20 julho 2007

Mais um, avó...

Este post começava assim, no dia 27 de Junho:
Tenho vindo a adiar este post já há uns dias... Custa-me fazê-lo mas também não quero deixar esquecer...

Mas agora, tenho que o corrigir para:
Tenho vindo a adiar este post há umas semanas... Tem-me custado mais do que esperava escrever o que me vai na alma acerca Dela. Escrevo: emociono-me. Penso, divago: emociono-me, recordo e não consigo manter as lágrimas guarda
das. Têm vontade própria, as sacanas! É fácil e feliz recordar, o complicado é olhar para o que foi em tempos e o que é hoje em dia.

Quando era miúda vivi muitos anos com os meus avós. O meu avô era sapateiro e trabalhava em casa e a minha avó sempre a conheci doméstica. Tenho poucas memórias do meu avô, que tanto amo. Lembro-me de ser ele a ensinar-me as primeiras letras, lembro-me do sorriso dele, de uma vez que se zangou comigo porque eu não soube fazer correctamente um trabalho de casa que consistia em fazer um círculo azul à volta dos números ímpares e um vermelho à volta dos pares. Eu gostava de fazer os "trabalhos" e os desenhos sentada num escadote... :D Sim, a fazer de mesa ficava o último degrau, o mais alto e mais largo e eu sentava-me num dos debaixo, com os pés pendurados do lado de dentro do escadote. Que ginástica! lol Nesta posição podia escrever e desenhar e observar o meu avô a trabalhar. Lembro-me de ele me levar à fisioterapia (não sei se seria todos os dias ou só umas quantas vezes por semana), à natação na piscina do Benfica (SLB! SLB! SLB!), ao parque... Morreu ainda não devia eu ter 10 anos... Com a doença que mais o aterrorizava: cancro. Na cabeça. Não sei pormenores. Nunca mos contaram. Até há pouco tempo eu nem sabia que tinha sido a "coisa má" a levá-lo. E recordo-me daqueles últimos meses em que tivémos lá em casa uma cama de hospital, em que lhe dei a alegria de já saber ler os nomes e números de telefone da agenda dele, uma vez que ele caíu e eu fui a correr chamar a vizinha Eliza porque não havia mais ninguém em casa (guardei este segredo, avô, como me pediste, durante muito tempo), outra vez em que fugi para a cama dele porque vi um rato fugir da minha! :-DMeus avós com o meu primo Hugo em Dezembro de 1981

E lembro-me do dia maravilhoso que passei em casa da tia que morava ao lado do Jardim Zoológico, cheio de brincadeiras e pequenos mimos... O dia em que regressei a casa para já não te encontrar.

Desculpem, não era para falar do meu avô que comecei este post, era para falar da minha avó.

Como eu ia dizendo, morei com os meus avós muitos anos, desde que me lembro de ser gente até à entrada na adolescência e um pouco mais além. Fiz muitas vezes o caminho a pé desde as Portas de Benfica até à praça de Benfica, todos os dias lá íamos as duas às compras, ou pelo menos sempre que eu não era impedida pela fisioterapia ou pela natação ou por alguma consulta de ortopedia, ou pelas viagens a Espanha para ir ao especialista... Enfim!

Estiveste sempre lá, avó. Depois do avô morrer os meus pais não quiseram deixar-te sozinha e lá nos mudámos todos para a tua casa. Passávamos os dias juntas, ias levar-me o lanche à escola primária, lembras-te? Compravas-me sacos de tremoços que eu devorava lendo em cima da cama e ralhavas comigo até à exaustão para eu ser mais arrumada. Desculpa decepcionar-te... Acho que nunca serei arrumada! Compreende, avó, quando eu arrumo tudo nunca mais encontro as coisas!!!

Fazias bolos sem precisar de receita ou de batedeira eléctrica e eu adorava lamber a tijela da massa! Gravitava em volta de ti até tu ma dares e eu me lambuzar toda! Gostavas de juntar os netos lá em casa e fazias quase sempre esparguete com carne para todos! Todos gostávamos imenso desses dias e dessas refeições. Lembras-te do primo Pedro meter a ponta do fio de esparguete na boca, os dedos indicadores a rodar nos ouvidos e sugar o esparguete para dentro da boca!?!! Ríamos tanto! Lamento informar-te que também não sou boa cozinheira como tu, mas faço muito bem o tal esparguete com carne! E gosto muito de fazer bolos e doces! Só não me peças para cozinhar que dá barraca...

Dizias que "a mulher quer-se pequenina como a sardinha", ou não fosses tu de tamanho "portátil" e andavas sempre connosco "a nove". Quando o meu pai te picava cumprimentando-te com um "olá, velha" respondias automáticamente "velhos são os trapos!". O teu único produto de beleza facial era o sabão azul e branco e quando chegaste aos setenta e todos se enganavam na tua idade achando sempre que não poderias ter um dia a mais que os sessenta, rias, orgulhosa. Para o provocar, sempre que te perguntavam a idade, respondias "que idade me dá?". Vaidosa! Sempre foste vaidosa, eras uma mulher bonita e tinhas orgulho nisso, assim como tinhas orgulho em ter os teus filhos sempre limpos e arranjados, e isso também se reflectia na tua mania das limpezas que tanto me irritava, pois tinhas muita vaidade na tua casa. O teu passatempo eram as tuas plantas. Na varanda grande tinhas uma floresta domesticada e tratavas todas as tuas plantas cantando. Se alguém tivesse um planta em mau estado, quase morta até, só precisava de ta entregar por uns tempos. Não sei que toque mágico teriam as tuas mãos, mas não havia planta que te morresse!

Chegou a adolescência... embirrávamos por tudo e por nada. Discutíamos a todas as horas... Eu era impossível e tu eras intransigente. Acabámos por sair de tua casa e voltar para a nossa. Moraste sozinha ainda durante vários anos.

Desta época lembro-me de ter saudades dos cheiros da tua casa, do cheiro e sabor do café de cevada acabado de fazer, das malas à porta para ires passar um fim de semana connosco ou as férias de verão. Lembro-me da tua felicidade quando te oferecemos uma televisão para o teu quarto... É imagem que não há tempo que ma apague da memória: a minha avózinha, aos pulinhos a rir e a bater com as mãos na cabeça! Tão feliz!

Todos os anos, no teu aniversário (a 3 de Outubro) a família se juntava toda: Os teus cinco filhos (o meu pai e as quatro irmãs) com os respectivos maridos e esposa e os teus oito netos. Mais recentemente juntavam-se à festa as namoradas e namorados destes últimos. Era uma alegria! Uma mesa cheia e a família toda junta, as conversas, os risos, os presentes, a tia Isabel que era sempre a última a chegar mesmo quando a enganávamos no horário a cumprir!...

Um dia caíste na farmácia e partiste um braço. Nunca mais foste a mesma. Sucessivamente descobriu-se a depressão, a má alimentação, a anemia, as perdas de memória, a falta de equilíbrio...

Já não podias morar sozinha e, mais uma vez, foi connosco que ficaste. Agora em casa dos meus pais, recuperaste lentamente da trombose que te tolheu alguns movimentos.

No início do ano passado o avc.

Dias e dias no hospital.

A família em polvorosa.

A dor, o medo de te perder.

Corri para Lisboa assim que possível e fui-te ver. O lado direito do teu corpo ficou paralisado. Já não podias andar e a tua mente ficou confusa. No início nem sempre nos reconhecias. Chamaste-me pelo nome da minha mãe várias vezes. Não estavas no 'agora', mas antes no 'ontem'. Sentada numa cadeira de rodas, ouviste-me dizer-te pela primeira vez aquilo que já sabias: Com os olhos rasos de lágimas, disse-te: amo-te, avó. Amo-te muito. E prometi-te que nunca deixaria de te visitar sempre que fosse a Lisboa.

Tal como o meu avô, a ti também acabou por te acontecer o que mais temias: Tiveste que ir para um lar. Não imaginas o que isso me custou, o quanto chorei por ti, como procurei desesperadamente encontrar outra solução. As horas que passei ao telefone com primas e tias, todas procurando o mesmo! As vezes que tive que encostar o carro para me deixar ir nas lágrimas, sozinha, para ninguém sofrer comigo. Não imagino como isso te custou mas via a tristeza no fundo dos teus olhos, ainda misturada com a esperança de voltares a andar e a sair dali.

Sempre que te visito recordo a lição que ainda me ensinaste e lembro-te: Amo-te avó, amo-te muito. Não te esqueças!

Depois de meses de massagens e fisioterapia, com uma trombose pelo meio, tornou-se claro que não voltarias a andar... Que não voltarias a viver fora do lar. Mais uma decisão difícil se impôs: a tua casa. A tua casa de tantas décadas, onde acabaste de criar os teus filhos, onde me criaste a mim, onde viste nascer todos os teus netos, onde morreu o avô... Era uma casa alugada e estava abandonada e a dar despesa há muito tempo. Concordaste, infeliz, e teve que ser. Uma vida em objectos queridos foi espalhada pela família, o mobiliário que não cabia nas casas há muito completas dos teus filhos e netos foi doado a uma instituição. Ao menos assim ajudámos alguém necessitado.
Entregámos a casa ao senhorio e mais uma vez, não tenho o poder de imaginar o que te doeu, apesar de não veres, perder a tua casa. A mim doeu mais do que esperava e só morei lá alguns anos, há tantos anos atrás! Eu fui lá, avó, sabias? Eu estive lá a ajudar a limpar e também trouxe para minha casa algumas das tuas coisas. O nosso quadro preferido, lembras-te qual era? Sim, o dos cavalos que estava na tua sala. Está agora na minha e continua a ser um preferido, desta vez do meu filho. Foi ele quem decidiu que o quadro vinha connosco! Dizem que não há coincidências... Fiquei também com outras coisas preferidas: uns copos, umas jarras, coisas assim... o esquilo de vidro oco que não serve para nada mas trás boas recordações, o serviço de chá dos passarinhos que só usavas em ocasiões especiais... Nada de valor mas com tanto valor para mim!

E agora...

Outro avc.

Do lar chamaram o INEM, nem chegaste a ir para as urgências. Já não havia nada a fazer.

Nesta última visita encontrei-te acamada, o corpo tolhido e imóvel, o olhar triste, tão triste... conseguia ver o esforço que fazias para nos sorrir e o sorriso triste que ofereceste às diabruras do teu bisneto. Oh, avó! é tão infinitamente triste esperar pela morte assim! Que será que tu tens ainda para fazer cá, nesta vida? Qual é o objectivo deste sofrimento?

MORRE! Quero que morras! NÃO! NÃO MORRAS... preciso de ti!
AMO-TE, AVÓ. AMO-TE TANTO! AMO-TE TANTO, TANTO!!!

Não te esqueças que te amo e perdoa-me não to ter dito mais cedo. Pelo menos isso eu aprendi: Não tenho vergonha de dizer "amo-te" às pessoas que me são importantes, e é dizê-lo agora para não o lamentar se um dia chegar a ser tarde demais. Perdoa-me as diabruras, as tristezas e desilusões e deixa-me agradecer-te por teres sido minha avó.

Obrigado, Avó.

Querida, Avó...



Oh! Este post está longo demais, triste demais! Se ainda te lembrasses como se lê já me estavas a ameaçar com a colher de pau! :-)

4 comentários:

Cenoura disse...

[[[[Mishka]]]]
Deixaste-me sem palavras, Amiga. O Amor é sempre bonito e a tua avó sente o teu. Podes estar certa disso. Eu estou.

Anónimo disse...

:(((((

Redshoes disse...

Minha linda, este pode ser um post triste, mas é uma "ode" à tua avó, a todo o amor que lhe dedicas.. Se puderes mima-a ao máximo nos dias em que ela ainda vai passar nesta terra...
Todos os momentos felizes que passaram nunca vão morrer

um beijo grande

Anónimo disse...

Fiqei com um nó na garganta.
Muita Força Muita Muita
Beijo
Sibara